Desde 2019, Glock recebeu mais de R$ 43 milhões em pagamentos do Executivo e assinou diversos contratos sem exigência de licitação
Alice Maciel, Bruno Fonseca, da Agência Pública - Uma das mais renomadas fabricantes de pistolas no mundo, a austríaca Glock, é comandada no Brasil pela irmã do atual ministro do Meio Ambiente, Joaquim Alvaro Pereira Leite. Trata-se de Fernanda Pereira Leite, advogada que representou a família no processo conflituoso de disputa de terras contra indígenas Guarani Mbya e Ñandeva, em São Paulo. Na diretoria jurídica da Glock, ela divide a sociedade da empresa com Franco Giaffone, piloto de corrida de automóveis que é patrocinado pela própria fabricante de armas.
Fernanda Leite está na Glock desde a década de 2010: há registros da participação da advogada e administradora na empresa ao menos desde 2012. Em 2016, com a saída do antigo presidente Luiz Antonio Martins de Freitas Horta — conhecido como Tatai — ela foi eleita diretora. O mandato inicialmente iria até 2017, foi renovado e, hoje, ela permanece na posição.
A reportagem procurou contato com Fernanda Leite através da Glock do Brasil e do escritório de advocacia em que trabalha, mas não obtivemos resposta até a publicação. Também enviamos questões ao sócio Franco Giaffone.
A Glock vende para o governo brasileiro desde 2005, quando forneceu armas para a Polícia Federal (PF). Nos últimos três anos, a empresa — que é a queridinha do filho 03 do presidente, deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL/SP) — recebeu mais de R$ 43 milhões em pagamentos do Governo Federal e, no início de 2020, assinou um contrato de mais de R$ 9 milhões com a Polícia Federal (PF).
Conforme levantamento da Agência Pública no portal de compras do Ministério da Economia, todos os últimos cinco contratos assinados pela Glock com o Governo Federal foram feitos com a PF ou a Polícia Rodoviária Federal (PRF).
O mais recente deles, assinado em janeiro de 2020 com a PF, acordou R$ 9,6 milhões para a compra de 5.099 pistolas da Glock para os policiais. Cada pistola custou cerca de R$1,8 mil. O acordo foi firmado com inexigibilidade de licitação.
Contratos com inexigibilidade de licitação têm sido uma constante nos acordos firmados pela Glock com o Governo Federal — e não a exceção. A Pública já havia mostrado que em 2018, a empresa recebeu mais de R$40 milhões na venda de mais de 27 mil pistolas para forças de segurança que atuavam na Intervenção Federal no Rio de Janeiro, como as polícias Civil e Militar e agentes da Secretaria de Administração Penitenciária (Seap). A dispensa se baseou num artigo da Lei 8.666 de 1993, que libera compras sem licitação “nos casos de guerra ou grave perturbação da ordem”, e foi assinada pelo coronel da reserva Francisco de Assis Reis Fernandes e ratificada pelo então interventor general Walter Souza Braga Netto, atual ministro da Defesa.
Foi também sem licitação que a Glock fechou um negócio de quase R$ 1 milhão para a venda de mais de 500 pistolas de treinamento para a Academia Nacional de Polícia Federal. O contrato foi assinado no final de 2018, já no período de atuação do governo de transição de Bolsonaro.
No governo de Michel Temer, a empresa também assinou um contrato de R$ 18,58 milhões com a PRF, igualmente sem licitação, para a venda de 11,2 mil pistolas. Na época, a inexigibilidade de licitação foi justificada por se tratar de “aquisição de materiais, equipamentos, ou gêneros que só possam ser fornecidos por produtor, empresa ou representante comercial exclusivo”.
A Pública questionou as assessorias da PF e da PRF sobre os valores e justificativas para os contratos com inexigibilidade de licitação, mas não tivemos retorno
Governo Federal comprou armas diretamente de sócio da Glock
Dos cinco contratos mais recentes firmados pelo governo federal com a Glock, dois deles foram fechados diretamente com Franco Giaffone, no dia 31 de dezembro de 2018, um dia antes de Jair Bolsonaro tomar posse como presidente da República. Foram adquiridas 800 pistolas no valor de R$4,6 milhões e 20 fuzis por R$838,29 mil destinados aos policiais rodoviários federais.
Além de piloto de corrida e sócio da Glock desde 2005, Franco Giaffone também atua no ramo de blindados. Ele administra a empresa Israelense no Brasil Plasan e faz parte do conselho consultivo da Associação Brasileira de Blindagem (Abralim), entidade que já foi presidida por ele. Sua família é fundadora e dona da G5 Blindagens Especiais, da qual Franco já foi diretor.
A atual sócia de Franco na Glock, Fernanda Pereira Leite, também trabalhou para a G5. Ela aparece nos registros do Instituto Nacional da Propriedade Industrial como procuradora da empresa, em 2006. A advogada ainda atuou como defensora da G5 em causas judiciais. Em 2011, por exemplo, representou a empresa em ação no Superior Tribunal de Justiça (STJ) — já arquivada — impetrada pela Fazenda do Estado de São Paulo.
Além das vendas para o governo federal, a Glock tem fechado contratos com diversas forças policiais do país. Agora, em outubro, a empresa venceu um pregão de R$ 783 mil com a Secretaria de Defesa Social de Pernambuco. O acordo foi firmado com a filial uruguaia da Glock, localizada em Montevideo — uma transação que já ocorreu outras vezes, desde a época que o diretor da empresa era Luiz Horta, o Tatai. O Uruguai já foi apontado como paraíso fiscal, mas essa definição não é mais consenso, sobretudo a partir de 2010, após uma série de mudanças na legislação tributária no país.
Apenas em 2021 e 2020, a Glock fechou contratos com a Secretaria de Segurança Pública do Piauí, por R$ 410 mil, a Justiça Federal do Mato Grosso do Sul, por R$ 50 mil, a Procuradoria-Geral de Justiça, por R$ 233 mil, o Tribunal Superior do Trabalho, por R$ 55 mil, dentre outros.
Glock, a marca usada pela família Bolsonaro
As armas da Glock são as preferidas da família Bolsonaro para uso pessoal. Em janeiro de 2019, Eduardo Bolsonaro comemorou em suas redes sociais a chegada de sua pistola Glock dourada e camuflada, importada pelo Clube e Escola de Tiro .38, do qual ele é membro associado. “Finalmente chegou minha pistola glock! Uma importação que só ocorre porque sou atirador, sócio de um clube de tiro, federado e confederado, o que dá mais de R$ 2.000/ano por baixo. A operação de importação demora em média quase um ano e uma arma desta custa algo em torno de R$ 10.000, sendo que já vi policial vendendo no Brasil uma glock por R$ 16.000! Nos EUA uma arma dessa vende em qualquer lugar por uns R$ 2.500”, escreveu.
O parlamentar, que é um dos principais ativistas no país pela flexibilização das leis de posse e porte de armas, voltou a fazer propaganda da marca oito meses depois, ao postar uma foto mostrando uma pistola Glock preta na cintura, em visita ao pai que se recuperava de uma cirurgia de correção de hérnia na capital paulista.
Segundo o jornal O Estado de São Paulo, teriam sido ele e o ministro Onyx Lorenzoni os responsáveis por fazer a ponte entre os representantes do setor de armas e munições com os Ministérios da Defesa, da Justiça, das Relações Exteriores e a Casa Civil. Só entre janeiro de 2019 e abril de 2020, segundo o veículo, foram 73 audiências. O representante da Glock, Franco Giaffone, foi um dos contemplados na agenda. Ele passou cinco horas no Ministério da Justiça no dia 09 de maio de 2019, conforme noticiou o jornal.
Um estojo da Glock, de guardar a arma, apareceu em foto divulgada pelo vereador Carlos Bolsonaro em janeiro de 2019, quando ele foi visitar o pai que estava internado no hospital Albert Einstein. À época, o Palácio do Planalto informou à revista Crusoé que o equipamento pertencia a Carlos Bolsonaro e que a segurança do presidente é feita apenas pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI).
No famoso episódio em que o presidente, então deputado federal, foi assaltado, em julho de 1995, Jair Bolsonaro também estava com uma pistola da marca Glock 38, que foi roubada.
Diretora da Glock defendeu família em processo conflituoso contra indígenas
Sócia da Glock no Brasil, a irmã do ministro do meio ambiente, Fernanda Leite, advogou para a família no processo que busca a posse de uma terra há décadas em disputa com os indígenas Guarani Mbya e Ñandeva, na TI Jaraguá, em São Paulo.
Em 2015, ela e outros advogados entraram com um mandado de segurança contra o Ministro de Estado da Justiça, questionando um entendimento da Justiça de que a terra da família Pereira Leite havia sido ampliada indevidamente, avançando sobre a área do Parque Estadual Jaraguá. Anos antes, em 2003, José Alvaro Pereira Leite — avô de Fernanda e do ministro do Meio Ambiente — havia entrado com uma ação de reintegração de posse afirmando que indígenas haviam invadido sua terra.
Segundo o relatório de delimitação da TI Jaraguá da Funai, o conflito com a família Pereira Leite tem origens na década de 1980, quando José Álvaro se apresentou como proprietário da área que veio a ser ocupada pelas aldeias Tekoa Pyau e parte da Tekoa Ytu, demarcadas em 1986.
De acordo com o documento, em 1986, o filho Joaquim Álvaro Pereira Leite Neto — pai de Fernanda e do ministro do Meio Ambiente — teria exigido à Funai que retirasse os marcos físicos da demarcação da terra indígena e acusado o órgão de estar praticando um crime. O relatório ainda afirma que a família intimidou os Guarani com capatazes, que destruíram uma das casas dos indígenas.
A disputa — e ataques — teriam se repetido anos depois. O documento menciona que, por volta de 2003, um representante da família que se apresentou como advogado teria ido à terra indígena e intimidado os moradores. Os indígenas relatam também pessoas passando de automóvel à noite, em alta velocidade, e disparando para o alto. A homologação da TI Jaraguá ainda não foi concluída pelo governo federal.
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