Até chegar a Londres, Caetano Veloso não tocava violão em seus discos. Os produtores não deixavam. "E eu lhes dava razão", escreve em "Verdade Tropical", autobiografia em que o músico conta a história da tropicália.
Foi a partir do otimismo do produtor britânico Ralph Mace que Caetano perdeu a vergonha e se deixou gravar tocando seu principal instrumento, pela primeira vez num disco. Aquele LP, chamado "Caetano Veloso", completa cinco décadas neste ano.
Ele e o álbum seguinte, "Transa", de 1972, registram o período que o tropicalista ficou exilado em Londres e pautam o repertório do cantor em live do festival Cultura Inglesa, na noite deste domingo. Ele vai cantar músicas desses discos e falar com o escritor Felipe Franco Munhoz.
Era 1971, e Caetano estava triste, depois de ficar dois meses preso no Rio de Janeiro e de ser proibido de fazer shows na fase mais dura da ditadura. Ele estava na capital britânica com Gilberto Gil, e não tinha vontade de voltar ao estúdio.
Caetano mostrou a hoje clássica "London London" --lançada no ano anterior por Gal Costa-- a Mace, mas disse que, para o disco, Gil ou outro músico assumiria o instrumento. Em resposta, ouviu que se outro tocasse violão, a canção perderia toda a graça.
Seu jeito de tocar violão, sob a influência de João Gilberto e Dorival Caymmi, aflorou justo longe do Brasil. Assim como a infiltração mais evidente da língua inglesa em sua obra.
Não que ela fosse estranha a ele. Na verdade, já havia escrito letras em inglês, sob a premissa de que se o terceiro mundo era bombardeado pelo idioma, nada mais justo que o usar a seu próprio modo.
Tocando violão e cantando em inglês, gravou "If You Hold a Stone" e "Shoot Me Dead", mas o ápice talvez seja "Maria Bethânia". A música começa com versos em inglês e muda de ânimo quando ele transforma a palavra "better" no nome da irmã. Caetano pedia uma carta com notícias boas.
A melancolia é perceptível na capa, em que o baiano, com barba e cabelos longos, veste um casaco de lã. Em "Verdade Tropical", diz que "Caetano Veloso" não trazia boas lembranças. "Até hoje esse disco me desagrada por lembrar-me demais minha depressão e minhas limitações pessoais."
As saudades do Brasil aparecem na versão quase psicodélica de "Asa Branca", clássico de Luiz Gonzaga, e na evocação da cantiga tradicional "Marinheiro Só" em "If You Hold a Stone". E ele agora se encantava com a energia emanada por Mick Jagger no palco.
A experiência de ver os Rolling Stones ao vivo e a confiança como violonista impulsionam o tropicalista em "Transa". O disco, o segundo do exílio, é hoje tratado por muitos fãs como o melhor de sua discografia e surgiu da ideia de fazer uma banda que expressasse o jeito dele de tocar.
O álbum, mais dinâmico, vigoroso e ousado, foi feito por uma banda que juntava a Caetano o baixista Moacyr Albuquerque, as baterias e percussões de Áureo de Souza e Tutty Moreno e as guitarras e os violões de Jards Macalé.
"Caetano dava ideias e cada um colocava sua parte do arranjo. Eu só dava uma limpeza final", Macalé disse em entrevista de 2012 a este jornal.
O disco de "You Don't Know Me", "Triste Bahia", "Mora na Filosofia" e "Nostalgia", entre outras, veio num momento de esperança. Caetano tinha feito uma viagem ao Brasil para gravar o famoso especial de TV com João Gilberto e Gal Costa e via com mais expectativa um retorno ao país.
Caetano cantou o "Transa" no Queen Elizabeth Hall e, em janeiro de 1972, já estava de volta ao Brasil programando as apresentações do álbum.
"A simples lembrança de que ali se deu minha primeira tentativa de criar um som a partir de minhas próprias ideias me enche de alegria", escreveu. O baiano voltava do exílio descobrindo não só a originalidade de seu violão, mas todas as maravilhas que poderia criar a partir da maneira de abordar o instrumento.
Em entrevista de 1991 ao Jornal do Brasil, disse "os ingleses me liberaram para o violão". "Achavam lindo o meu jeito de tocar e os brasileiros achavam horrível. Se não tivesse sido preso e exilado, talvez nunca tocasse violão num disco."
Caetano Veloso no Festival Cultura Inglesa
Dom. (7), às 19h. Na plataforma digital do 24º Cultura Inglesa Festival. Grátis
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