TRF-2 conclui que violência sofrida por Inês Etienne Romeu na ditadura não tem amparo na Lei da Anistia
Inês Etienne Romeu descreveu as torturas que sofreu e o nome de seus algozesInês Etienne Romeu descreveu as torturas que sofreu e o nome de seus algozes Marcos Tristão
Única presa política a sair viva da Casa de Morte de Petrópolis, em 1971, Inês Etienne Romeu denunciou que foi estuprada por um de seus carcereiros, identificado como Camarão, pelo menos duas vezes, nos 96 dias em que ficou no aparelho clandestino do Exército, na serra fluminense. Em decisão inédita, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2) entendeu que essa violência não encontra amparo na Lei da Anistia e determinou que a Justiça Federal siga com uma ação penal contra o acusado.
Antônio Waneir Pinheiro de Souza, o Camarão, era um dos agentes do Centro de Informações do Exército (CIE) destacados para atuar na Casa da Morte, um dos mais brutais cárceres clandestinos da fase mais violenta do regime militar. Cabia a Camarão, um ex-paraquedista, atuar como caseiro. Se a ação judicial resultar em punição, o caso produzirá a primeira condenação de um agente da repressão no Brasil. E com o agravante de incluir a denúncia de abuso sexual.
Sustentada pelo Ministério Público Federal (MPF), a denúncia contra Waneir, a princípio, foi rejeitada pelo juiz da 1ª Vara Federal de Petrópolis, Alcir Luiz Lopes Coelho. Lopes alegou que, para o Supremo Tribunal Federal, a Lei da Anistia é compatível com a Constituição, não havendo amparo legal para processar Camarão. O juiz também alegou que os crimes já estariam prescritos, e chegou a citar uma frase do guru conservador Olavo de Carvalho na sua decisão.
O TRF-2 reformou a decisão de Coelho ao analisar um recurso do MPF. Obrigado a instaurar o processo, o juiz absolveu Camarão sumariamente. O Tribunal não acolheu a decisão e determinou há um mês o seguimento do processo.
Em voto decisivo, a desembargadora Simone Schreiber disse que o Judiciário reluta em lidar com o seu passado e adotar um modelo adequado às obrigações assumidas pelo Brasil no plano internacional. “Essa dificuldade de enfrentar as graves violações cometidas em nome do Estado estão amparadas em uma cultura do esquecimento, da qual algumas das consequências, reconhecidas pela comunidade internacional, são a perpetuação de estruturas de poder autoritárias e legitimação de violências policiais e torturas cometidas nos dias de hoje contra a população civil”, alertou.
Morta em 2015, Inês era militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), liderada pelo capitão do Exército Carlos Lamarca, quando foi sequestrada em São Paulo, em 5 de maio de 1971, por uma equipe do delegado Sérgio Fleury. Transferida para o Rio de Janeiro, foi encarcerada na Casa da Morte até o dia 11 de agosto do mesmo ano. Sofreu torturas físicas e psicológicas, incluindo os estupros, e tentou o suicídio em três oportunidades.
Inês só conseguiu escapar com vida porque se comprometeu a colaborar com os torturadores, infiltrando-se nas organizações armadas para delatar os companheiros. No entanto, após ser solta, não apenas descartou a colaboração como, em documento assinado, descreveu em detalhes as torturas que sofreu, os nomes e codinomes de alguns dos seus algozes e também os nomes de outras vítimas que passaram pela casa.
Após uma investigação tardia, o Ministério Público Federal (MPF) acusou Camarão, em 2016, de sequestro e cárcere privado, com imposição de grave sofrimento físico e moral, em razão de maus-tratos, e estupro praticado por pessoa com autoridade sobre a vítima, por duas vezes. Após a rejeição da denúncia pelo juiz de Petrópolis, o MPF alegou em seu recurso ao TRF-2 que a Lei de Anistia violava os Tratados de Direitos Humanos assinados pelo Brasil.
'Denúncia imprecisa'
João Pedro Barreto, advogado de Camarão, argumentou que os crimes imputados estão prescritos. Também classificou a denúncia de “imprecisa, genérica e vaga, além de traduzir persecução criminal injusta, incompatível com o princípio da dignidade da pessoa humana e com o postulado do direito à defesa e ao contraditório”. Um dos pontos questionados é que o reconhecimento por fotografia, como feito com Inês, seria insuficiente como prova.
A Coalizão Brasil por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia, em nota, informou que acompanha com atenção os desdobramentos do processo movido pelo MPF contra Waneir. Diante da decisão do TRF-2, a entidade entende “ser fundamental que Camarão seja definitivamente julgado”.
“É simbólico que esta nova decisão tenha sido proferida às vésperas do mês de março. Mês que reúne as datas do Dia Internacional das Mulheres, dos cinco anos do feminicídio político de Marielle Franco e dos 59 anos do golpe de Estado de 1964”, sustenta a coalizão.
A defesa pode recorrer, mas isso não impede o prosseguimento da ação penal. Camarão não foi localizado para comentar o caso.
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