“São 12 composições de autoria de Manacéa. Apenas uma, 'Volta, meu amor', foi feita por ele em parceria com a filha, Áurea Maria. Modéstia à parte, o disco vem sendo muito elogiado e ficou muito bom, graças a Deus. Tenho a certeza e muita fé em Deus de que será um sucesso”, diz ela.
O álbum está disponível no canal de Tia Surica no YouTube. No repertório, destacam-se clássicos de Manacéa, como “Quantas lágrimas”, que todo mundo conhece das rodas de samba, mas desconhece quem a compôs. Aliás, essa canção tem tudo a ver com estes tempos de pandemia.
Diz assim: “Ah! Quantas lágrimas eu tenho derramado/ Só em saber/ Que eu não posso mais/ Reviver o meu passado/ Eu vivia cheio de esperança e de alegria/ Eu cantava, eu sorria/ Mas hoje em dia eu não tenho mais/ A alegria dos tempos atrás”.
A direção musical de “Conforme eu sou” é de outro mestre: Paulão Sete Cordas. O disco conta também com Cristina Buarque, irmã de Chico e expert em samba. Aliás, foi essa cantora, que interpreta a faixa “Inesquecível amor”, quem apresentou “Quantas lágrimas” ao Brasil, em disco lançado em 1974.
Tia Surica é também famosa cozinheira – sua feijoada é considerada a melhor do Rio de Janeiro. Pois a “cozinha” do novo álbum, sob a batuta de Paulão Sete Cordas, não poderia ser menos competente: Rogério Caetano (violão de seis cordas), Márcio Vanderley (cavaquinho), Dudu Oliveira (flauta e sax), Luiz Barcelos (bandolim), Rodrigo Reis, Leo Rodrigues e Waltis Zacarias (percussão), Lazir Sinval, Deli Monteiro, Iracema Monteiro e Sílvia Nara (vocais). Também estão lá Velha- Guarda, Áurea Maria, Sergio Procópio e Rubão da Cuíca.
Grata a Manacéa, Tia Surica comenta: “Ele foi responsável pelo que sou hoje.” Surica conta que seu primeiro contato com a escola se deu aos 4 anos, levada pela mãe, Judith, e o pai, Pio. Fez de tudo na azul e branco: cantou no coro, desfilou nas alas, saiu de baiana. Também puxou o samba na avenida, em 1966, cumprindo a ordem do lendário Natal. Aquele samba-enredo se chamava “Memória de um sargento de milícias”, composto por um jovem chamado Paulinho da Viola...
“Se alcancei meus objetivos, foi com muita força do Manacéa, que me integrou à Velha-Guarda da Portela, na qual estou desde a década de 1980. Infelizmente, não sou compositora, somente intérprete. Confesso: gostaria muito de compor, porém acho que não tenho inspiração para tal”, diz ela.
DE COR
Tia Surica conhece como poucos a obra do “padrinho”. “Já sabia de cor todas as canções dele, por isso foi fácil fazer o repertório do disco. Fizemos uma relação e fomos eliminando até chegar às 12 faixas. Não tivemos dificuldade, apenas demos uma peneirada e ficou lindo”, comenta.
“Gravamos no estúdio, sob o comando do Paulão. Para fazer um CD digno, tem que ser mesmo em estúdio”, afirma, feliz com a participação de Cristina Buarque em seu novo trabalho. “É minha amigona. Ela me chama de minha preta e eu a chamo de minha branca.” Surica agradece à irmã de Chico Buarque pelo empenho em divulgar a obra de Manacéa.
Violonista, arranjador e produtor, Paulão Sete Cordas destaca o papel de Manacéa na música popular brasileira. “Ele foi um dos compositores mais importantes da história da Portela. Um dos poucos que ganharam samba-enredo na escola, se não me engano, três”, observa.
Aliás, foi Manacéa quem convidou Paulão para tocar com a Velha- Guarda. “Fiz a direção musical daqueles shows nos anos 1980 e 1990. Convivemos muito, é motivo de muita alegria fazer um CD só com trabalhos dele. Eu e Surica conhecemos tudo dele. Só gravamos uma inédita, a que a Cristina Buarque canta. Acreditamos que ainda existem coisas que precisam voltar à baila para que as pessoas possam conhecê-las.”
O conceito do disco de Tia Surica remete à roda de samba. “Foi como se estivéssemos em casa. Uma coisa bem elegante, não muito pesada, sem bateria e contrabaixo. Gravamos com violão de seis e sete cordas, bandolim, cavaquinho, flauta, percussão e coro. Ficou muito legal”, diz Paulão, bamba que já tocou com Nelson Cavaquinho e trabalha com Zeca Pagodinho há mais de 20 anos.
“Conforme eu sou” é o terceiro disco da sambista carioca. Em 2004, ela lançou “Surica” (Fina Flor), também produzido por Paulão Sete Cordas, com direção de Ruy Quaresma. O repertório, claro, reúne a elite da Portela – Monarco, Aniceto, Jair do Cavaquinho, Mauro Duarte e Candeia, entre outros.
O CD e DVD “Tia Surica – Poderio de Oswaldo Cruz”, de 2013, novamente produzido por Paulão Sete Cordas, contou com a participação da Velha-Guarda da Portela, Diogo Nogueira e Mariene de Castro. O repertório reuniu sambas de Monarco, Argemiro, Aniceto e Manacéa, além do mineiro Toninho Geraes.
PANDEMIA
Aos 80 anos, Tia Surica não mede esforços para divulgar o samba, a Portela e seus compositores queridos. No último Dia das Mães, lançou nas plataformas digitais o single “Conselho da mamãe”, outro clássico de Manacéa. Preocupada com a pandemia e o impacto da COVID-19, ela desabafa: “Está muito constrangedor, já não falo nem do carnaval, mas das pessoas desabrigadas e passando fome. Tenho muita fé em Deus de que isso vai passar.”
A dama do samba garante que cumpre à risca o isolamento social. “Não vou para a rua, muito menos até a Portela. É complicado... Conheço muita gente que morreu por causa da COVID-19”, revela Tia Surica. (Com Ângela Faria)
Repertório
» “CONSELHO DA MAMÃE”
» “SEMPRE TEU AMOR”
» “MANHÃ BRASILEIRA”
» “VOLTA”
» “QUANTAS LÁGRIMAS”
» “INESQUECÍVEL AMOR”
» “VOLTA, MEU AMOR”
» “A NATUREZA”
» “NASCER E FLORESCER”
» “QUANDO QUISERES”
» “FLOR DO INTERIOR”
“CONFORME EU SOU”
• Disco de Tia Surica, com canções de Manacéa
• 12 faixas
• Disponível nas plataformas digitais
Mestre do samba
O legado de Manacéa José de Andrade (1921/1995) é patrimônio da Portela, do Rio de Janeiro e do Brasil. Irmão de Aniceto e Mijinha – lendas da azul e branco de Oswaldo Cruz –, ele compôs sambas para vários enredos levados à avenida: “Homenagem à princesa Isabel” (1948), “O despertar do gigante” (1949), “Riquezas do Brasil” (1950) e “Brasil de ontem” (1952), por exemplo.
A paixão pelo carnaval veio da infância, informa o “Dicionário Cravo Albin de música popular brasileira”. Criança, Manacéa já rodeava os blocos Quem Fala de Nós Come Mosca, Quem nos Faz é o Capricho, e Vai Como Pode, que deram origem à Portela.
De origem humilde, o carioca trabalhou em fábrica de gelo e como serralheiro. Na década de 1940, seu talento já chamava a atenção nas escolas de samba e morros do Rio. Aos 18 anos, teve a primeira música gravada, “Minha querida”.
O samba “Quantas lágrimas” estourou em 1974, no disco de Cristina Buarque. Em 1970, a canção já havia sido registrada por Paulinho da Viola no LP da Velha-Guarda da Portela.
“A melodia dele era muito forte. Teve ocasião em que cheguei a ver portelenses, como o Chico Santana, fazerem samba-enredo, mas, depois de escutar o do Manacéa, botar no baú e não disputar”, contou Monarco, outro patrimônio da azul e branco.
Foi no quintal de Manacéa e dona Neném, em Oswaldo Cruz, que a Velha-Guarda da Portela fez seus primeiros ensaios, à base de partido-alto, samba de roda, galinha com quiabo e churrasco, preparados pela anfitriã e por Aniceto.
As composições de Manacéa fazem parte do repertório de Beth Carvalho, Zezé Motta, Paulinho da Viola, Cristina Buarque, Teresa Cristina e Marisa Monte, entre outros.
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