O Brasil de Jair Bolsonaro quer uma aliança com os Estados Unidos e "outros parceiros democráticos" para barrar a ascensão de do "tecno-totalitarismo" de países com "diferentes modelos de sociedade" --ou seja, a China.
A afirmação foi feita durante um painel virtual de debate do Fórum Econômico Mundial pelo chanceler brasileiro, Ernesto Araújo.
Ele fez questão de não nominar "nenhum país ou companhia específicos", mas todas suas intervenções foram voltadas a fustigar a China, maior parceiro comercial brasileiro e no centro da chamada guerra da vacina, por ser o principal produtor de insumos dos imunizantes a serem feitos no Brasil.
Araújo estava acompanhado da chanceler espanhola, Arancha González, e do ministro canadense François-Philippe Champagne (ex-Relações Exteriores, agora Inovação), numa conversa mediada pelo presidente do fórum, Borge Brende.
A ideia era debater o conceito de cooperação internacional ante a realidade da pandemia da Covid-19 e da mudança climática --temas nos quais o negacionismo do governo Bolsonaro, alimentado pela ala ideológica da qual Araújo faz parte, é notório.
Enquanto os colegas debatiam a necessidade de garantir vacinação equânime e enfrentar os desafios da demanda de imunizantes, Araújo preferiu falar na necessidade de manter valores como a liberdade nas relações internacionais.
"Qualquer mudança nos EUA é imensa para nós", disse o chanceler, um fã declarado do antecessor do presidente Joe Biden, Donald Trump. "Se o foco é em mudança climática, OK, mas queremos fundamentar relação em liberdades", disse.
Foi uma referência enviesada ao pacote de US$ 2 trilhões na área do clima anunciado pelo democrata, que assumiu na semana passada.
"Um desafio é emergência do tecno-totalitarismo. Não se trata da questão de EUA contra China, mas é uma questão de diferentes modelos de sociedade. Novas tecnologias podem ser ótimas para a democracia, mas podem fornecer meios para um Estado totalitário, e não queremos isso."
"Queremos tratar desse tema com os Estados Unidos e parceiros democráticos", disse, excluindo a ditadura comunista da equação.
"Quem controla o discurso tem um tremendo poder. Não podemos deixar isso na mão de atores, e não falo aqui de países ou companhias específicas, que não são comprometidos com a liberdade", disse o chanceler.
Se não foi um ataque direto à China, como já fez no passado ao lado de expoentes do bolsonarismo com os filhos do presidente, foi uma pouco disfarçada declaração de princípios --ainda que tenha poupado os participantes da maquinações sobre o globalismo maléfico que permeiam suas falas.
"Quando olhamos para os anos 1990 e 2000, a ideia era de que a China iria se tornar parecida com o Ocidente. Isso não aconteceu. O Ocidente se tornou mais parecido com a China. Nós não temos de mudar nossa sociedade", afirmou.
Sobre mudança climática, que Araújo já chamou de ideologia, ou Covid-19, cuja trapalhada na compra de doses de vacina da Índia custou pressão sobre seu cargo, nenhuma elaboração foi feita.
Seus colegas foram mais cautelosos quando questionados sobre os efeitos da separação ("decoupling", no jargão internacional em inglês) dos modelos tecnológicos dos países encarnada na disputa pela implementação das redes 5G --a chamada internet das coisas.
Como se sabe, a China oferece um produto mais barato e eficaz, mas que é acusado no Ocidente de embutir elementos de espionagem ou roubo de dados. A discussão está viva no Brasil, que teoricamente decide neste ano quem vai poder fornecer equipamentos e operar o 5G no país.
"Não podemos permitir a separação [nas relações internacionais] quando o assunto é a mudança climática. Temos de evitar a todo custo o confronto [entre China e EUA]", disse González ao comentar a posição europeia ante a briga dos gigantes.
Champagne concordou com Araújo acerca da necessidade de promover a governança democrática, mas disse que a relação com a China é "algo complexo".
Para Araújo, a única forma de lidar com a questão é deixar as pendências para serem resolvidos em entidades como a Organização Mundial do Comércio, desde que reformuladas --o Brasil compartilha a visão americana de que a China não joga pelas regras ali.
"O sistema internacional tem de premiar a democracia", disse o brasileiro. Reticente acerca de Biden, afirmou que o Brasil quer trabalhar com o novo presidente americano "dentro desse arcabouço de liberdade" e que é a favor do que o democrata chamou de "aliança de democracias".
Aproveitou e repetiu a narrativa usual do bolsonarismo de que o Brasil vinha "de uma situação em que estávamos longe das democracias", em relação à política Sul-Sul da era Lula, que já havia sido parcialmente revertida nas gestões Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB).
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