Confira quais foram os livros que ganharam destaque em 2020: mesmo com a economia parada, editoras lançaram uma boa leva de títulos.
O ano começou com uma ideia distante de pandemia, quando o vírus se espalhava pela China, mas não foi preciso muito tempo para o globo inteiro mergulhar no caos do isolamento. Nesse processo, muitos lançamentos foram adiados, e uma quantidade igual de lives com escritores tomou as redes sociais. Em 2020, foi possível ver o rosto e ouvir as vozes de quem só acompanhamos pelas páginas dos livros. A vantagem do livro é que pode ser consumido sem a necessidade de aglomerar. Quando teatros e cinemas fecharam as portas, eles continuaram circulando e o ano foi produtivo em termos de lançamentos.
O romance Torto arado, de Itamar Vieira Júnior, foi o romance brasileiro de 2020, agraciado como o melhor nos prêmios Jabuti e Oceanos. A história de Bibiana e Belonísia atravessa um Brasil rural, violento e desigual. Doutor em estudos étnicos africanos, Vieira Júnior teve a própria história como pano de fundo para a criação das personagens. “Fui criado por uma família de mulheres protagonistas da vida familiar. Desde a concepção inicial da história, 20 anos atrás, as irmãs são as protagonistas. Depois, trabalhei no campo, com trabalhadores rurais, e fui mais uma vez tocado pelo poder que a mulher exerce em determinados grupos, apesar de vivermos em um país extremamente patriarcal. Foram essas mulheres — da família e do campo — que me permitiram construir todo o universo ficcional de Torto arado”, conta.
A tragédia da escravidão perpetuada no século 21 com outros nomes e as relações de trabalho moldadas a partir dela formam o cerne do romance, que conta a história de duas irmãs de família que trabalha para latifundiários em uma condição precária de direitos. “Eu li com muito interesse a literatura e a história da escravidão, considerava que era um problema superado em larga escala pela abolição e pelo progresso social que veio com a República e amadurecimento da nossa democracia”, conta Vieira Júnior. “Quando fui trabalhar com camponeses, há 14 anos, percebi que a escravidão remanescia de muitas formas nos rincões mais remotos do país, como no sistema de morada retratado no romance.”
Ditadura
Com uma história que envolve duas gerações afetadas pela ditadura brasileira, Corpo interminável, de Claudia Lage, venceu o Prêmio São Paulo de Literatura. No livro, enquanto Daniel busca reconstruir a história da mãe, uma guerrilheira desaparecida na ditadura no Brasil, sua namorada, filha de um militar, depara-se com segredos familiares. “Sempre me incomodou o silêncio sobre essa época da nossa história e percebi que minha geração sempre teve um desconhecimento muito grande, embora fosse uma geração de filhos da ditadura”, conta a autora. Um dia, ela descobriu que conhecia pessoas que haviam participado da Guerrilha do Araguaia, mas nunca haviam falado sobre o assunto. “Para mim foi assustador, como se estivessem abafando a própria história pessoal, além da história do país”, lamenta Claudia.
Lançado no segundo semestre, O avesso da pele, de Jeferson Tenório, foi uma das boas surpresas da literatura nacional em um ano em que protestos contra o racismo se espalharam por vários países. No livro, um filho mergulha na própria identidade ao narrar a trajetória do pai, um professor morto pela polícia na periferia, por um equívoco provocado pela cor da pele. “Houve um aumento de demanda por um tipo de narrativa que falasse de racismo, de homofobia. Houve uma amplitude nos temas”, avalia o autor, ao constatar a repercussão de O avesso da pele.
Pandemia
Enquanto o novo coronavírus se espalhava pelo mundo, a pandemia surgiu como tema em uma série de publicações. A editora Intrínseca trouxe A grande gripe, uma pesquisa extensa do jornalista John M. Barry sobre o estrago causado pelo vírus influenza em 1918. Detalhado, o livro é também assustadoramente atual ao expor os conflitos sociais e políticos da época: Barry não precisa fazer a comparação com os dias atuais, o leitor bem informado se encarrega disso e se surpreende a cada novo capítulo. Sobre a gripe espanhola no Brasil, Lilia Schwarcz e Heloisa Starling publicaram A bailarina da morte.
O livro acompanha o navio Demerara, que aportou em Recife vindo de Liverpool e trouxe a influenza para o Brasil. As autoras começaram a trabalhar na ideia do livro quando a pandemia começava a tomar força. “Fui olhar e notei que não havia qualquer referência à gripe espanhola no Brasil. Vi que existia, já na época, no próprio contexto, um imenso silêncio. Converso sempre com Heloísa e falamos sobre essa ideia, o que era esse silêncio e por que não escrevíamos. Resolvemos tentar fazer o livro, mas não imaginávamos que não poderíamos nos encontrar”, conta Lilia.
Ainda sobre vírus e pandemias, Contágio, do jornalista científico David Quammen, é leitura obrigatória para compreender como os vírus passaram, na contemporaneidade, a pular de outras espécies para os seres humanos. Também deve ser lido com sangue frio: longe de acalmar, o conhecimento destrinchado por Quammen só causa inquietações sobre qual será a próxima pandemia e o quão letal ela poderá ser.
Brasil contemporâneo
Quatro excelentes lançamentos também marcaram o segundo semestre. Em A organização, a jornalista Malu Gaspar destrincha a história da construtora Odebrecht e seu percurso pelos caminhos do poder e da corrupção ao longo dos anos. É leitura de fôlego — são 640 páginas —, mas dessas que, uma vez iniciada, fica difícil parar.
O crime também está em Mataram Marielle, de Chico Otávio e Vera Araújo, e em A república das milícias, de Bruno Paes Manso. No primeiro, a dupla de repórteres detalha como se deram tanto a execução de Marielle Franco quanto a investigação do assassinato. Ao apontar como houve leniência e negligência por parte das autoridades nos primeiros momentos após o crime, os jornalistas mergulham numa rede que envolve da polícia à política. É também esse o tema do livro de Bruno Paes Manso, que faz uma radiografia da formação das milícias no Brasil. Já Abuso: A cultura do estupro no Brasil, de Ana Paula Araújo, é uma extensa reportagem construída a partir de casos ocorridos nos últimos anos e estatísticas divulgadas com frequência e, muitas vezes, ignoradas pelo poder público.
O crime também está em Mataram Marielle, de Chico Otávio e Vera Araújo, e em A república das milícias, de Bruno Paes Manso. No primeiro, a dupla de repórteres detalha como se deram tanto a execução de Marielle Franco quanto a investigação do assassinato. Ao apontar como houve leniência e negligência por parte das autoridades nos primeiros momentos após o crime, os jornalistas mergulham numa rede que envolve da polícia à política. É também esse o tema do livro de Bruno Paes Manso, que faz uma radiografia da formação das milícias no Brasil. Já Abuso: A cultura do estupro no Brasil, de Ana Paula Araújo, é uma extensa reportagem construída a partir de casos ocorridos nos últimos anos e estatísticas divulgadas com frequência e, muitas vezes, ignoradas pelo poder público.
Para entender o mundo
Lançados com poucos meses de intervalo, dois livros importantes abalaram a cena política norte-americana. Primeiro, veio Raiva, o segundo livro de Bob Woodward sobre a administração de Donald Trump. No mês passado, foi a vez de Uma terra prometida, de Barack Obama. No primeiro, Woodward dá sequência a Medo, lançado no ano passado, e traz denúncias e revelações sobre como o presidente dos Estados Unidos menosprezou a pandemia e como escorrega em assuntos de segurança nacional a ponto de seu gabinete fazer um enorme esforço para manter o país a salvo. A passagem pela Casa Branca também é tema do livro de Obama, que vai além ao refletir sobre várias questões nacionais, inclusive a eleitoral, que gerou tanto debate nas eleições de novembro.
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