O desmatamento na Amazônia foi o ponto que levou o Brasil a ser citado no debate entre os candidatos à Presidência americana Joe Biden e Donald Trump, na noite da terça-feira (29/09).
Biden disse que "começaria imediatamente a organizar o hemisfério e o mundo para prover US$ 20 bilhões para a Amazônia, para o Brasil não queimar mais a Amazônia".
"(A comunidade internacional diria ao Brasil) aqui estão US$ 20 bilhões, pare de destruir a floresta. E se não parar, vai enfrentar consequências econômicas significativas", afirmou Biden no debate.
A declaração gerou uma resposta imediata e revoltada do presidente Jair Bolsonaro, que classificou o comentário como "lamentável", "desastroso e gratuito" e fez uma série de postagens críticas a Biden no Twitter.
O brasileiro também usou a cúpula da ONU sobre biodiversidade para rebater o americano e falou em "cobiça internacional" pela Amazônia.
Já o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, ironizou a proposta e questionou se o valor da ajuda seria anual.
Entenda a proposta de Biden e por que ela irritou o presidente brasileiro.
Preocupação internacional com o ambiente
O fato do candidato democrata Joe Biden tocar no assunto dos altos índices de desmatamento e as queimadas na Amazônia brasileira reflete a atenção cada vez maior do ocidente ao aquecimento global e à questão ambiental, explica Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais na Fundação Getúlio Vargas (FGV).
A destruição da floresta tem, desde o ano passado, gerado grande preocupação internacional.
O Brasil já recebeu ajuda financeira externa para criar programas de combate ao desmatamento e de preservação da floresta, como o Fundo Amazônia, lançado em 2008 como o maior projeto da história de cooperação internacional para a preservação da floresta.
O fundo era financiado majoritariamente pela Noruega e pela Alemanha, que anunciaram em 2019 a suspensão dos repasses diante do aumento no desmatamento e da política ambiental do governo Bolsonaro.
"Uma eleição de Biden poderia levar os EUA a adotarem uma postura em relação ao Brasil mais parecida com a da Europa, onde há um movimento para que o acordo comercial (com o Mercosul) seja condicionado à não destruição da Amazônia. É um reflexo da crescente preocupação com o meio ambiente na política ocidental", afirma Stuenkel.
"Os EUA poderiam ter uma postura mais dura contra o governo Bolsonaro, que neste momento é visto como grande vilão global do meio ambiente."
Bolsonaro reagiu à fala de Biden, dizendo que "o Brasil mudou. Hoje, seu Presidente, diferentemente da esquerda, não mais aceita subornos, criminosas demarcações ou infundadas ameaças".
"Nossa soberania é inegociável", completou Bolsonaro, e citou também uma suposta "cobiça internacional pela Amazônia".
A proposta de Biden de organizar um financiamento para o Brasil em nenhum momento questionou a soberania brasileira, avalia Stuenkel. "A ideia de que existem grupos querendo 'roubar a Amazônia' é antiga em alguns grupos, mas é algo que não existe. É uma coisa que em relações internacionais chamamos de 'paranóia da Amazônia'", afirma.
"Faz parte dessa narrativa de que o Brasil está isolado e que há um grupo lá fora que quer destruí-lo. É um discurso de que há um 'inimigo externo', que foi inclusive usado pela ditadura militar, e que é conveniente para o governo Bolsonaro, porque pode justificar todo tipo de medidas de exceção."
O analista político Creomar de Souza, CEO da consultoria de risco político Dharma, concorda com a avaliação de Stuenkel e diz também que a citação de soberania e afirmação de que "essa presidência não se subordina" é "extremamente contraditória diante da postura do governo Bolsonaro em relação aos EUA".
Recentemente, veio a público um vídeo do presidente Bolsonaro no Fórum Ecônomico Mundial dizendo ao ex-vice-presidente americano Al Gore queria "explorar os recursos da Amazônia com os EUA", ao que Gore responde que não entendeu.
Na cúpula da biodiversidade da ONU, Bolsonaro voltou a citar a ideia de "cobiça internacional" pelo bioma brasileiro, dizendo que o seu governo está combatendo o desmatamento e "problemas que favorecem as organizações que, associadas a algumas ONGs, comandam os crimes ambientais no Brasil e no exterior".
O presidente já repetiu diversas vezes a alegação de que incêndios são causados por ONGs, sem jamais apresentar nenhuma prova.
Irritação presidencial
No entanto, Stuenkel afirma também que a reação "bastante agressiva e defensiva" de Bolsonaro é muito menos relacionada à proposta de Biden em si e muito mais uma tentativa de manter apoio em sua base.
"Não tem nada a ver com a soberania, é uma questão de engajar seus eleitores", diz o professor de relações internacionais.
"Essa reação gera muito apoio entre seus seguidores mais radicais e entre uma parte do eleitorado que tem um interesse direto nessa desregulamentação do ambiente, como grileiros, madeireiros etc.", afirma Stuenkel.
"Por enquanto, o custo da pressão internacional é menor do que abrir mão do apoio desse grupo interno", afirma Stuenkel.
Creomar de Souza afirma que o "posicionamento de política externa do Bolsonaro não tem como preocupação direta a política externa, mas o interesse de fazer uma plataforma eleitoral continuada".
"Ou seja, ele quer sempre engajar e resgatar o apoio de seu eleitorado. Dá para ver como ele quer agradar o seu eleitor típico ao colocar nas falas a comparação com outros momentos da história, com outros governos, citar a esquerda", diz Souza.
Como fica a relação com os EUA se Biden vencer a eleição?
Em certa medida, afirma Creomar de Souza, a fala de Biden segue a mesma lógica da de Bolsonaro em ser voltada para os eleitores internos.
Ele afirma que todo o debate "foi direcionado para apelar para as preocupações dos eleitores democratas com o ambiente e incentivá-los a sair de casa para votar" — o voto não é obrigatório nos EUA.
Apesar da forte retórica do presidente Bolsonaro contra Biden, recentemente o embaixador brasileiro em Washington, Nestor Forster Junior, afirmou que independentemente de quem vença o Brasil vai continuar a manter boas relações com o país.
Uma relação pragmática e não tão hostil entre os países mesmo com a vitória de Biden é possível, afirma Stuenkel, mas pode ser complicada pela relação de Bolsonaro com Trump.
"Embora uma vitória de Biden vá levar a uma postura mais dura, é possível que ela nem seja tão dura quanto a europeia, já que a maior preocupação de Biden é a crescente influência da China no continente e não o ambiente — e o governo Bolsonaro é visto como possível aliado para conter essa influência", diz Stuenkel.
"No entanto, Bolsonaro e Trump com certeza vão manter contato, e ter um presidente brasileiro ativamente apoiando a oposição nos EUA pode complicar uma tentativa Biden de ter uma relação pragmática com Brasil."
Stuenkel afirma que outra variável é a avaliação do governo Bolsonaro de se vale a pena "dobrar a aposta" e continuar com uma retórica defensiva diante de uma possível crescente pressão internacional.
"Se Biden ganhar e fizer uma aliança com a Europa para pressionar pela preservação do ambiente, o custo da pressão externa (para Bolsonaro) pode ser maior do que o ganho retórico entre seus eleitores mais fiéis", diz.
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