Com uma produção tumultuada que envolveu troca de ator e diretor, o filme tem muitos pontos fracos e um fortíssimo: a atuação de Rami Malek como o vocalista.
Cinebiografias musicais costumam compartilhar algumas características repetitivas. Não é raro nelas algum tipo de embate entre a futura estrela, ainda no anonimato, com um pai conservador. O descrédito por parte de uma gravadora também é de praxe, bem como o efeito complicador da fama na vida amorosa do artista e seus desentendimentos com colegas de banda, em geral frutos de algum tipo de excesso.
Em Bohemian rhapsody, que estreia nesta quinta (1º) no Brasil, há tudo isso, mas com uma dose a mais de polêmicas para contar a história de um dos vocalistas mais talentosos e performáticos da história do rock e sua banda igualmente lendária.
Quem teve a honra e o desafio de reencarnar Freddie Mercury foi o norte-americano de origem egípcia Rami Malek, de 37 anos. Com carreira mais destacada na TV, onde ganhou um Emmy e foi indicado ao Globo de Ouro pelo papel principal na série Mr. Robot, este é o seu primeiro grande papel no cinema. No início do projeto, Freddie seria vivido por Sacha Baron Cohen. Mas o ator britânico entrou em atrito com o guitarrista do Queen Brian May, que é um dos produtores do longa, e desistiu do papel, no que foi o primeiro percalço de uma série na trajetória do longa, que levou anos para se concretizar.
Em 2013, foi confirmado que o intérprete de Borat havia deixado o projeto. A discordância de Cohen com o encaminhamento do roteiro foi a razão do atrito. Ele imagina que o filme deveria retratar a carreira e a vida privada de Freddie sem suavizar aspectos como seu envolvimento com drogas. E achou que a versão do roteiro imposta pelos músicos remanescentes do Queen se aproximava mais de uma propaganda institucional da banda do que de uma cinebiografia de Freddie Mercury.
Três anos após o rompimento, Cohen falou abertamente sobre sua saída, em entrevista ao programa de rádio norte-americano Howard Stern Show. “Um dos membros da banda me disse: ‘Este filme será ótimo, porque o que acontece no meio é excelente’. Perguntei o que seria, e ele respondeu: ‘Freddie morre, ué’. Deduzi que seria como Pulp fiction, em que o fim é o meio e o meio é o fim, mas ele disse: ‘Não, será normal’. Perguntei o que teria na segunda metade, e ele explicou: ‘Você sabe, vamos mostrar como a banda seguiu em frente fazendo sucesso’. Aí eu falei: cara, ninguém vai querer ver um filme em que o protagonista morre de Aids no meio e a carreira de seu grupo continua.”
DEMISSÃO
Brian May, por sua vez, declarou à Associated Press que Sacha Baron Cohen “não levava Mercury a sério” e que por isso foi retirado do papel. Mas essa não foi a única confusão envolvendo Bohemian rhapsody. O diretor Bryan Singer, que realizou a maior parte das filmagens, foi demitido na reta final por desentendimentos com o elenco, sobretudo com o ator principal. Dexter Fletcher foi chamado para concluir o trabalho. Para a sorte dos realizadores, ao menos uma coisa foi certeira: a aposta em Rami Malek para assumir o papel de Freddie.
Com figurinos cuidadosamente recriados, Malek se serve de sua semelhança física com o vocalista do Queen e de uma meticulosa recriação de seu gestual em shows para capturar o espectador. “Tentei não fazer uma imitação. Estudei canto e piano todos os dias, assisti inúmeras vezes aos vídeos dele. Treinei, li tudo o que havia para ler, dei o meu melhor e espero que o público goste disso. O que posso dizer? Tentar capturar a sua essência é definitivamente o trabalho mais difícil que já fiz”, afirmou Malek à revista Vanity Fair. Para recriar a magnífica voz de Mercury, foi preciso uma mixagem de áudios originais do astro e também do cantor canadense Marc Martel, considerado um grande “cover” dele.
Com tantas turbulências, o projeto que nasceu em 2010 chega às telas cercado de desconfianças e também de expectativas. Depois de um flash forward em que a câmera segue Mercury do camarim ao palco montado no Estádio de Wembley, o roteiro de Anthony McCarten (A teoria de tudo, O destino de uma nação) começa em 1970. O jovem Farrokh Bulsara, um carregador de malas no aeroporto de Heathrow, nascido em Zanzibar (Tanzânia), filho de indianos e criado em Londres dentro das tradições parses, conhece Roger Taylor (Ben Hardy), Brian May (Gwilym Lee) e John Deacon (Joseph Mazzello), respectivamente, baterista, guitarrista e baixista que tocavam em pequenos pubs e precisavam de um novo vocalista. Ele se oferece para a função.
Farrokh logo se assume como Freddie, e o quarteto se torna o Queen. Não demora muito até que o sucesso crescente da banda chame a atenção de grandes empresários da música, como John Reid (Aidan Gillen), chegando até o produtor Ray Foster (Mike Myers), que havia trabalhado com o Pink Floyd em Dark side of the moon, mas rejeita o ousado projeto de Bohemian rhapsody, uma ideia que misturava ópera com rock’n’roll.
O filme procura mostrar Freddie como uma mente brilhante, mas não solitária, ressaltando que os outros integrantes também compunham letras, riffs e tinham ideias inovadoras, como a batida de We will rock you, atribuída a Brian May. O processo criativo desse e de vários outros hits, sobretudo da faixa-título, ocupam boas fatias do longa. O filme deixa claro, por exemplo, que Love of my life foi escrita por Mercury para Mary Austin (Lucy Boynton), com quem viveu um romance, se casou, mas de quem se separou depois de tornar pública sua bissexualidade. Os dois continuaram amigos.
SEXO
A sexualidade do front-man, reconhecido como um grande ícone da causa gay, é mostrada de modo superficial no longa, o que atraiu muitas críticas em países onde o filme estreou na semana passada. A história mostra que Freddie vai se envolvendo com homens à medida que o sucesso do Queen e as turnês aumentam. Não há cenas de sexo, nem beijos mais ardentes. Jim Hutton (Aaron McCusker), com quem ele teve um relacionamento até o fim da vida, entra na história também de forma discreta.
O roteiro de Bohemian rhapsody apresenta o agente pessoal Paul Prenter (Allen Leech) como o grande vilão da história. Não fica claro se a relação de Paul com Freddie vai além da amizade, mas ele é apontado como o responsável por fazer o vocalista se desentender com os colegas de banca e procurar uma carreira solo – que nunca decolou. O mergulho mais fundo de Freddie Mercury no álcool e em outras drogas também é atribuído à influência de Paul Prenter.
A doença que causou a morte do protagonista é retratada como parte do contexto que fez com que Freddie se reconciliasse com o Queen, dando a entender uma dependência mútua entre o líder e seus companheiros. Como apontou Sacha Baron Cohen, o final é o meio. A narrativa não vai até a morte de Mercury, em 1991, mas se encerra no antológico show em Wembley, em 1985, no festival Live Aid, que angariava fundos para combater a fome na África. Na reunião dos maiores nomes do pop mundial na época, cada artista tinha 20 minutos no palco, tempo que foi impecavelmente encenado na íntegra para uma grande cena final.
Esse e outros momentos musicais podem arrepiar mesmo quem não é fã do Queen. Por outro lado, outros aspectos do longa podem revoltar os admiradores mais fervorosos da banda. O lendário show no Rock In Rio de 1985, por exemplo, em que a multidão canta Love of my life a capella, é mostrado fora de contexto, cronologicamente antes disso, de acordo com o visual que o cantor usava, entre outros detalhes. Há uma semana em cartaz no Reino Unido, o lançamento tem uma avaliação mediana de 5,9/10 no site Rotten Tomatoes.
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