Qual a influência que o lançamento de um filme em um festival internacional pode ter para a carreira do projeto? Por certo, isso vai depender do filme e do festival.
O Brasil vem frequentando, com destaque, os mais prestigiosos eventos do gênero.
Já em 2017, abriu a temporada com presença maciça nos festivais de Roterdã, na Holanda – 15 produções nacionais, entre curtas e longas – e Berlim, na Alemanha – 12 filmes. Cannes, que em 2016 assistiu à première de Aquarius na competição principal, teve na edição realizada em maio três filmes brasileiros. Único longa brasileiro do festival, Gabriel e a montanha, de Felipe Barbosa, deixou o evento francês com dois prêmios da Semana da Crítica.
Agora é chegada a vez de Locarno. O evento suíço, conhecido por dar devida atenção à produção independente, selecionou três longas-metragens para sua 70ª edição, que será realizada entre 2 e 12 de agosto.
Estão em disputa As boas maneiras, novo filme da dupla paulista Juliana Rojas e Marco Dutra (Trabalhar cansa), Era uma vez Brasília, do goiano Adirley Queirós, e Severina, do carioca Felipe Hirsch. Os dois primeiros são histórias originais e o terceiro, uma adaptação do conto homônimo. Trabalhos anteriores destes realizadores também iniciaram carreira em festivais estrangeiros.
“É importante fazer a primeira exibição internacional num festival na Europa porque nestes eventos vai muita gente da indústria, que são possíveis compradores”, comenta Juliana Rojas. Trabalhar cansa, por exemplo, foi lançado em maio de 2011 em Cannes. “Lá, fechamos negócios e começamos uma conversa sobre outros festivais que o filme poderia ir. Porque um festival não é importante só para a estreia comercial, mas neste tipo de evento há curadores de outros festivais, que acabam convidando o filme”, acrescenta ela.
Trabalhar cansa foi exibido em uma série de festivais. Ainda foi vendido e exibido comercialmente na França e nos Estados Unidos, dois grandes mercados. Parceiro de Juliana, Marco Dutra acrescenta: “A gente faz filmes tanto para o Brasil quanto para fora. Quando esse lançamento ocorre no exterior, ele já cria uma audiência possível. As reações ao filme acontecem no mundo todo e, quando voltamos para casa, ele já tem um pouco mais de bagagem.”
Dois realizadores que têm uma trajetória – tanto em conjunto quanto individual – em filmes de gênero, Juliana e Marco não fogem a ele em As boas maneiras. Só que a nova produção não se limite a um gênero só: flerta com a fantasia, o horror e o musical.
Isabél Zuaa, atriz nascida em Lisboa de pais africanos, vista em Joaquim, de Marcelo Gomes, que competiu no Festival de Berlim, interpreta Clara, uma enfermeira da periferia de São Paulo. Ela é contratada para ser a babá do filho que Ana (Marjorie Estiano), uma mulher de classe alta, está esperando. Não se sabe quem é o pai e à medida que as duas mulheres se aproximam, Clara percebe que há algo estranho com Ana e a gravidez. O elenco ainda traz a cantora Cida Moreira, que interpreta a senhoria de Clara.
“Quando se fala em filme de gênero, penso um pouco em alegoria, que é uma tendência natural do cinema brasileiro. Isso vem desde o Cinema Novo, de Joaquim Pedro, um cineasta que sempre gostei muito”, diz Dutra. Para ele, As boas maneiras mistura tanto os gêneros que não se sabe onde está a fronteira entre um e outro. “Gênero não é uma coisa estanque.”
Dirigir conjuntamente, para Juliana, funciona muito bem com Marco Dutra. Os dois começaram a trabalhar juntos desde a época da faculdade. “Não tem uma divisão formal de tarefas”, diz ela. “Desde o início do roteiro, nós meio que fazemos tudo juntos. E os filmes (que fizeram juntos) têm um resultado diferente do que teriam se tivéssemos feito sozinhos, pois, quando se está dirigindo um filme junto, você tem que entrar num consenso, fazendo um exercício grande de interlocução.”
É também através das alegorias que Adirley Queirós vem construindo sua filmografia. Seu filme anterior, Preto sai, branco fica (2014), é um híbrido de documentário com ficção científica. Ora fábula, ora filme militante, a produção parte de uma tragédia (a mutilação de jovens negros durante intervenção policial nos anos 1980) para construir uma história que imagina Ceilândia (cidade-satélite onde o diretor vive) em um futuro distópico.
Em Era uma vez Brasília, o cineasta continua em toada semelhante. Em 1959, um agente intergaláctico recebe como missão vir para a Terra e matar o presidente da República, Juscelino Kubitschek, no dia da inauguração de Brasília. Só que a nave se perde no tempo e no espaço e só consegue chegar à Terra em 2016. Aterrissa em Ceilândia e se envolve com um exército que está sendo montado para destruir o Congresso Nacional.
AMOR OBSESSIVO
Inspirado em um conto do escritor guatemalteco Rodrigo Rey Rosa, Severina trata de um amor obsessivo. R., o dono de uma livraria, fica intrigado com uma moça que começa a frequentar sua loja. Logo, ele se descobre em um emaranhado que encobre Ana, moça que rouba volumes de livrarias para ler e compartilhar com um suposto avô. Aos poucos, o desorientado homem descobre que a fronteira entre o racional e o irreal é fina demais.
“Fazia sete anos que eu não rodava um filme, desde Insolação, e eu vinha pensando no filme que não faria”, conta Felipe Hirsch que, desde 2013, começou a refletir no palco sobre a realidade latino-americana e a brasileira, em particular.
Severina, o conto, traduz com perfeição o argumento buscado pelo encenador – escrito durante um período marcado pela dor da separação, o texto trata de amor e perdão. “Rey Rosa o define como um delírio amoroso, uma metáfora sobre a situação que marcou sua vida e sobre o poder libertador do perdão”, conta o cineasta, que rodou o longa inteiramente em Montevidéu, no Uruguai, o que contribuiu enormemente para conferir o clima misterioso da trama. “E porque também o Brasil não se encaixa com perfeição na realidade da América Latina.”
Isso refletiu na produção – Severina é um mergulho cinematográfico no pensamento de vários autores do continente, o que se torna mais acentuado pela eclética formação do elenco: uruguaios, argentinos, brasileiros, chilenos, guatemaltecos e até portugueses.
Hirsch promove singelas homenagens, marcadas pela presença de Daniel Hendler (destaque em filmes do cineasta argentino Daniel Burman) e Alfredo Arturo Castro Gómez, veterano ator chileno, cuja participação é pequena, mas decisiva. O casal protagonista é formado pelos argentinos Carla Quevedo e Javier Drolas, cuja atuação é impecável. (Com Estadão Conteúdo)
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